sexta-feira, 24 de abril de 2009
DUAS PESSOAS
”Eu digo: o teu cabelo. Ela está agachada junto à cama, procurando um sapato que se extraviou. Ergue a cabeça, de lado, e os olhos lentos e confusos parecem indagar desamparadamente. Estas pequenas prostitutas ficam diante de mim desprovidas quase de qualidades humanas. Possuem o corpo, máquina de algum talento, enquanto a minha solidão continuamente se exerce e cria uma zona intensa, extrema, atravessada por outras presenças, estranhas criaturas calorosas que aparecem e desaparecem, que se substituem, sem atingirem nunca uma forma definitiva. Criaturas incertas, mas verdadeiras. Expressões de uma nebulosa aspiração. Que alcançariam as palavras num dia suposto. Ou me tocariam à noite, ao pé de uma lâmpada íntima, e deste modo provocariam em mim, pela memória, densas associações, frémitos, o sentimento da alegria ou da proximidade da morte. O meu cabelo? - pergunta ela. Está ainda nua. Os joelhos, os seios, os ombros, os sombrios olhos atónitos - são realmente belos. E eu sorrio como se me desculpasse. Devo dizer: não sou puro. Talvez deva dizer: quando murmurei essa frase que se poderia confundir com um apelo ou um repentino e insustentável movimento da emoção («o teu cabelo» ), não pensava, não sentia nada. Eis a verdade: sou uma criatura devastada pelo egoísmo". Continua aqui.
Herberto Helder, in Os Passos em Volta
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário